Para criminalistas ouvidos pelo Estadão, as declarações fazem parte de uma estratégia para sustentar que todas as ações de Bolsonaro ocorreram “dentro das quatro linhas da Constituição” e permaneceram no campo da cogitação, o que, em tese, afastaria a configuração de crime. Especialistas apontam, contudo, que o debate sobre atos preparatórios já está superado. Além disso, a issão do ex-presidente de que levou aos comandantes das Forças Armadas “alternativas constitucionais” como o estado de sítio para reverter o resultado eleitoral é vista como um ponto que pode agravar sua situação jurídica, já que esses instrumentos, embora previstos na Constituição, não se prestam ao fim alegado e teriam sido evocados fora de seu contexto legal.
Essa avaliação tem como pano de fundo um dos momentos mais sensíveis do interrogatório. Bolsonaro foi questionado pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, sobre a reunião com os comandantes das Forças Armadas realizada em dezembro de 2022, no Palácio da Alvorada, na qual teria sido apresentada uma minuta golpista. Em resposta, o ex-presidente afirmou que, após o TSE rejeitar o pedido do PL para anular parte dos votos do segundo turno, discutiu com os comandantes da Marinha, Almir Garnier; da Aeronáutica, Carlos Almeida Baptista Júnior; e do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, o que chamou de “considerandos”- uma análise de cenários que incluía decretar Estado de Sítio, Estado de Defesa e Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Ele itiu que em uma das reuniões, essa sem a presença de Baptista Júnior, exibiu na TV os considerandos da minuta.
Para o criminalista Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM-SP, a estratégia de Bolsonaro ao afirmar que discutiu apenas mecanismos constitucionais busca enquadrar os atos na legalidade, diante do volume de provas reunidas pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet.
Crespo avalia, no entanto, que as declarações podem ser interpretadas como uma confissão parcial da existência de um plano golpista, o que tende a agravar sua situação. “Ao confirmar discussões estruturadas com autoridades militares, ele ite fatos. Sob essa perspectiva, reconhece movimentos em busca de alternativas ao resultado eleitoral”, diz o jurista.
Bolsonaro, por sua vez, afirmou que, embora tenha discutido o tema com os comandantes, a reunião não envolveu uma minuta golpista. Segundo o ex-presidente, não houve recebimento nem alteração de qualquer documento com esse conteúdo. A versão contrasta com o depoimento do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens, que, na segunda-feira, 8, reafirmou que Bolsonaro recebeu, leu e “enxugou” o texto com propostas golpistas.
“Não procede o enxugamento”, rebateu o ex-presidente durante o interrogatório.
Na tentativa de reforçar essa linha de defesa, Bolsonaro também buscou sustentar que os atos descritos na denúncia não aram da fase de atos preparatórios. Para o criminalista e professor de direito penal da PUC-PR Aury Lopes Jr., a estratégia é negar qualquer cogitação concreta de golpe que configure o início da execução do crime.
A diferenciação é fundamental no direito penal. Embora a tentativa de golpe de Estado já configure crime, apenas os atos executórios, isto é, aqueles que efetivamente iniciam a concretização da conduta criminosa, são puníveis. Já os atos meramente preparatórios, como reuniões ou discussões abstratas, não são penalmente punidos, mesmo que revelem intenção.
Nessa linha, Bolsonaro procurou afastar qualquer indicativo de ação concreta. Aury destaca que o ex-presidente afirmou não ter assinado nenhuma minuta, descreveu as conversas como “bastante informais” e alegou que não houve propostas formalizadas. O ex-mandatário também mencionou que as medidas foram descartadas por falta de “clima”, “oportunidade” ou “base minimamente sólida” para uma ruptura institucional.
O professor Fernando Neisser, da FGV-SP, avalia que Bolsonaro adotou a única estratégia possível diante do conjunto de provas: reconhecer as conversas, mas alegar que qualquer medida exigiria a convocação formal do Conselho da República ou das Forças Armadas,o que não ocorreu.
Para Neisser, o ex-presidente tentou apresentar os encontros com militares e ministros como desabafos motivados pela derrota eleitoral, recorrendo à imagem de alguém “boquirroto” e emocionalmente abalado, numa tentativa de atenuar o peso das conversas.
Além disso, Bolsonaro tentou sustentar a tese do crime impossível, quando a consumação do crime se torna inviável pela ineficácia absoluta do meio empregado.
Na avaliação do criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, o ex-presidente procurou reforçar a tese de que não haveria como executar um golpe sem o apoio das Forças Armadas, argumento usado também para afirmar que os atos de 8 de janeiro não poderiam ser enquadrados como tentativa de golpe. Para isso, recorreu a declarações como a do ministro da Defesa, José Múcio, que afirmou não considerar os ataques uma tentativa golpista.
“Golpe não são meia dúzia de pessoas, dois ou três generais e meia dúzia de coronéis. Vejam 64. Falar em golpe de Estado? O que aconteceu depois do meu governo, sem armas, sem núcleo financeiro, sem qualquer liderança, isso não é golpe”, disse Bolsonaro.
Apesar dessas estratégias, criminalistas avaliam que a situação jurídica de Bolsonaro segue frágil na próxima etapa do processo. Crespo destaca que, além da confissão parcial do crime de tentativa de golpe, as provas reunidas por Gonet e os depoimentos de outros réus são consistentes, o que reduz as chances de sucesso da defesa. “A questão dos atos preparatórios já foi superada, as provas mostram que houve algo além disso”, afirma. Kakay concorda: “A situação até piorou, porque ele não conseguiu provar sua inocência. Entrou péssima e saiu pior”, resume.